latinoamerica
20.2.06
  via crucis
ultimamente tem sido difícil trabalhar a palavra, não é mesmo? então ele larga tudo de lado e, num ato profético, começa a desenhar no ar a cena com o dedo. no canto faz um sofá confortável o suficiente para oitenta e cinco quilos de matéria humana, onde certamente ficará questionando sua capacidade mental até cansar-se da fisionomia do teto. é lá que o prodígio tomará uma dose e adormecerá por alguns minutos, despertando pouco depois sem reclamar a Deus e ao Diabo a dor em seu pescoço porque o seu desespero parece não só ter enrijecido os braços daquele que o acolheu durante o cochilo, mas aquela coisa dentro do peito também.

aconteceu com todos. alguns chamaram de “mal do escritor”, no entanto a maioria morreu ou apinharam sanatórios e casas de custódia sem saber que o mal, na verdade, é ser o escritor. a coisa toda te pega por trás, faz você acreditar que tem estilo, uma prosa agradável, poesia envolvente, controle sobre o vício que te mantém acordado durante a noite; a máquina metralha sem dó o papel e sempre aparece um troço seu publicado aqui e acolá. mas aí vem aquele vento frio que passa entre as janelas e arrepia a espinha do sujeito. as palavrinhas voam e a tinta seca. o papel endurece. aquela coisa lá dentro também, eu disse, aconteceu com todos.

são os ares da má sorte. o prodígio desenha no ar um martelo. havia aquela brincadeira de moleque onde a turba agitada, num misto de satisfação e dor, imobilizava o catatau e estouravam-lhe as pedrinhas do peito. mas essa pedra aí dentro cresceu muito, cara, talvez precise de um martelo ainda maior. a ausência de sentimento sufoca e você não consegue saber onde foram parar aquelas boas idéias que teve quando me deixou sozinho aqui e foi respirar o mundo que há além da porta. eu fico puto porque você levou os cigarros e o rádio não sintoniza uma boa programação. tudo bem. você volta. sempre volta. cada vez pior e mais vazio, por isso te escolhi. é mais fácil chutar alguém quando este ganha o chão.

chuvisco. novamente. beleza, o locutor atenta às notícias nacionais: “massa de ar frio avança sobre a região sudeste. aumenta o número de mortes causadas por armas de fogo nos grandes centros. anciã dá a luz ao décimo segundo filho.” é um alívio saber que o mundo anda nos trilhos. a porta se abre e o prodígio desaba no sofá. vejo que tem um pedaço de qualquer coisa nas mãos, deve estar com fome. surge uma barata e ele, numa última tentativa de sentir aquela coisa funcionando novamente, oferece a refeição ao bicho, que recusa sem pensar.

isso foi demais para mim. então eu escondo o rosto com o capuz e cruzo o ar com a foice. incisão perfeita, sem dor. antes que o melado se espalhe eu ganho a rua pela janela com aquela coisa premiada na mão esquerda. ele também será alçado ao panteão de heróis.
j. sobrante
 
palpites Comments:
cara...da hora o texto
acho que você captou bem o "mal do escritor"... principalmente do escritor beat, vagabundo nato, fodido.
fodão

falow
 
o luciano falou tudo no post acima...com sua permissão meu camarada...faço de suas palavras as minhas...
 
Adorei o texto.Palavras encaixadas e climatizadas. Perfeito. Mas não entendo uma coisa que o escritor pode me elucidar: é bom se sentir mal ou é uma fuga sagaz?
Abraços e parabéns.
 
Você não vai chegar a lugar nenhum...
Mil anos se passaram e voce ainda vai estar parado na mesma esquina..
sai dessa vida, vai trabalhar, esquece essa historia de ser escritor...
 
added to favourites, ok? Até mais
 
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