latinoamerica
27.7.05
  você não vai a lugar nenhum
às vezes lembranças de minhas estrondosas bebedeiras ganham todo o meu campo mental. eu permito que isso aconteça, eu permito que eu sofra um pouco. eu fui realmente estúpido durante alguns anos de minha vida. tempo demais parado, tempo demais esperando algo acontecer, esperando alguém chegar e acabar de vez com as minhas preocupações. de fato, não foi o que aconteceu. de alguma maneira eu sobrevivi, consegui escapar como um náufrago encharcado.

o meu anjo da guarda não vai acreditar no que direi, mas direi: não foi um tempo de aflição. o real momento no charco de lama foi quando desejei respirar e percebi que não era possível. foi o momento da compreensão, a mudança de figura. então aqueles perigosos demônios eram os meus grandes amigos e nos divertíamos muito quando estávamos juntos. pensávamos as mesmas coisas, compartilhávamos de nossas cabeças. eu não queria deixá-los pra trás, seria como abandonar o carro do ano, um espelho partido, uma ponta de baseado. mas precisei abandonar o exército como um desertor cheio de dúvidas, os planos mudaram, corri até novas paisagens.

e então tudo é maravilhoso e divino – sintam a ironia disso, seus desgraçados, por favor.

olhando o bairro através da janela eu sinto que os federais estão no meu rastro. eu sou uma terrível anomalia genética que precisa ser eliminada com urgência. estou aqui sentado, aguardando um helicóptero aparecer entre os telhados. esperando o alto-falante gritar o meu nome. homens pendurados em cordas segurando metralhadoras. familiares chorando diante do irremediável. eles que esconderam a verdade de mim durante toda a minha vida. ninguém tentou superar a covardia e jogar limpo, num lance de ousadia e irreverência.

- Querido, eu sinto muito, mas você é diferente.
- Meu filho, as coisas deram errado com você. Você saiu com o cérebro menor do que o de uma taturana.
- Taturanas possuem cérebro?

e então todos dão gargalhadas como naquelas festas da infância em dias tão bonitos.
eu sinto muito. eu sinto muito. eu sinto muito e muito e muito.
bobagem. besteira. tagarelice de um escritor num colapso nervoso. é só um sintoma moderno. um SINTOMA MODERNO, entendeu?

a vendedora de salgados bateu três vezes na porta do quarto. eu pulei assustado, agarrei uma estátua de um homem e uma mulher que se abraçam, uma estátua que carrego comigo. se fossem os federais eu poderia tentar escapar. racharia o crânio de um deles e fugiria para o mato. viveria de agricultura de subsistência, uma casa, no pé da montanha. trinta anos meditando até a morte chegar.

você pode dar risada, almofada, mas esses pensamentos passaram pela minha cabeça como um trem descarrilado.

as pessoas contam estórias. as pessoas gostam de estórias. me contaram que um velho, após trinta anos seguidos de bebedeiras, ao achar o fato de estar vivo algo extraordinário, decidiu encerrar a carreira. mas precisava de uma válvula de escape. funcionamos como uma máquina. e então o velho começou a se comer. de maneira muito sugestiva, devorou primeiro as mãos. e isso levou meses, era bastante meticuloso. depois enveredou pelos braços numa triunfal demonstração do poder inconsciente. ele começou a dar espetáculos em casas noturnas. se comia por algumas horas, as pessoas pagavam para vê-lo. ganhou dinheiro. a carne estava acabando, ele não desistiu, nem poderia, mas continuou. uma morte lenta põe um fim nesta epopéia.

não estou tão louco, não agora. tento me manter na linha, tento encaixar as peças que surgem e piscam como novidades publicitárias. eu saí da toca, ingênuo, puro e inseguro. o sistema só encontra um jeito de funcionar. para filhotes como eu a estratégia é única. tentam me atrair com propostas de um mundo seguro, estável e sem grandes surpresas. eu estou balançando. há buracos que precisam ser preenchidos. há um imenso campo que precisa ser semeado. o mundo tem uma proposta para mim e eu nunca tive uma proposta para ele. a questão é se faremos ou não uma guerra. a minha visão está mais limpa. o meu campo de vista é mais vasto e permite uma percepção mais apurada dos processos.

a paranóia é um artificio natural que me faz ganhar tempo. eu vou sentar a minha bunda numa pedra e elaborar um novo contrato. faremos um acordo. pode acreditar, irmão, eu vou exigir todos os meus direitos.
ramon belame
 
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