latinoamerica
19.7.05
  Apoiado no portão, a fumar um cigarro, a refletir sobre as casas perfiladas.

A palavra agora é enfastiado. Enfastiar – verbo transitivo -, tirar o apetite; enfadar; aborrecer. Estudo o dicionário; grande, velho, as páginas amareladas e rasgadas, algumas estão faltando. Atiro sobre a cama o espesso livro de capas pretas, ele cai pesado, afunda o colchão, ondas se formam ao redor no lençol imitando um terrível maremoto, gigantes ondas estáticas.

Desgaste. Bum. Bum. Bum. Bum. Quero explodir o mundo e acabar com Deus e este dever cansativo. Homens bons não deveriam existir, porque homens bons sentem uma incômoda responsabilidade.

Apoio os braços no portão gelado, fumando, fico a observar a rua, as pessoas, a espantar uma mosca. Elas são rápidas. Possuem sensores espalhados no corpo, detectam o perigo e escapam.

É uma longa tarde nublada. Admiro as casas perfiladas nos flancos da rua, insalubres. O cenário é feio, humano, moderno. É desolador perceber onde conseguimos chegar após séculos de evolução material e psíquica. A modernidade é demasiado fragmentada para possibilitar uma definição precisa. Existem apenas tentativas, existem apenas opiniões conflitantes. Eu arriscaria dizer que a coisa toda não passa de uma grande CONVENÇÃO. A modernidade fez a sociedade voltar-se para ela mesma, numa incrível masturbação social. Os poderosos realmente são uns gênios, mentes desgarradas, camaradas fortes que se cagam de rir ao ouvir uma jaculatória.

Imagino os especialistas em exterminar a fé popular, dentro de suas academias, seguros sobre si mesmos, completamente urbanos. O que ele está querendo? É apenas um jovem idiota apoiado em seu portão, fumando um cigarro. Tragam o nosso chá, aqui todos nós falamos inglês fluentemente.

Aí eu bato as cinzas, claro, estou condoído, mas não estou sozinho. A história registrou o nome de grandes guerreiros, os caras em quem nos inspiramos, e vocês sabem disso.

Samael Aun Weor começou assim em "A Grande Rebelião": "ainda que pareça incrível, é muito certo e de toda verdade que esta tão cacarejada civilização moderna é espantosamente feia; não reúne as características transcendentais do sentido estético; está desprovida de beleza interior".

Há certa energia nestas palavras. A afirmação de uma idéia. É alguém e suas tripas, o espírito gritando.

Tem alguns dias que eu e minha garota visitamos uma pequena cidade nas montanhas, encravada na serra, distante o suficiente da capital. Um céu extraordinário, a via-láctea estendida no alto como um tapete mágico, fogueira, as pessoas mais lentas, as peças devidamente encaixadas. Eu quero me mudar para cá, eu dizia; eu quero me mudar e que se foda a grande cidade; quero ter o nome estampado na história como o Grande Fugitivo; isso: O FUGITIVO. Cheguei mesmo a averiguar o preço de uma casinha de pedras, mas ninguém tomou conhecimento.

Me movo. Coço a perna esquerda com a perna direita. Espremo as bolas do saco até sentir um pouco de dor. Estou vivo e aterrizando novamente na grande CONVENÇÃO. Não é porque foi o último modelo alcançado que significa ser o modelo correto. É essa a grande alienação, a grande e mais perigosa escravidão da história. A arma é a sutileza, a isca eletrônica, a pesca virtual. Estão sendo fabricados conceitos de vida, uma derrota pungente para aqueles que se preocupam.

Eu poderia arrancar os meus olhos. Apoiado no portão, vejo num telhado distante um homem trabalhando numa antena. Muitos telhados nos separam, mas faço uma leitura. Alto, moreno, brasileiro. Consigo imaginá-lo gritando para o bairro, gritando para mim, num microfone gigante. VOCÊ É O CARA MAIS FORTE DO PAÍS! Eu me aborreço.

A tarde vai ficando escura. O homem lá no alto, mexendo na antena. Lembro-me de uma oração. Estranha energia circula minha espinha. É melhor quando a noite desce, as casas quase desaparecem, brotam mais fáceis as coisas de dentro, como flores num cemitério de túmulos recentes.
ramon belame
 
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