latinoamerica
16.12.03
  E o garçom foi demitido.


Mal o Lincoln azul estacionou, o manobrista do restaurante já se apresentava para poder levar o carro até uma vaga no estacionamento.Margot observando a tamanha subordinação à qual o pobre homem se submetera, empinou ainda mais o seu nariz de socialite falida, enquanto Ernest se encarregava de acender um cigarro e, quem sabe, dar uma moeda para o manobrista.Era uma tarefa árdua para um homem cujo rabo e carteira, não necessariamente nessa ordem, haviam sido perdidos nas cartas.
Embora mais falidos do que um escritor em Los Angeles, ainda tinham algum dinheiro.E fome também.Não iriam chorar até o último centavo gasto – isso era para os emergentes, eles tinham classe.E com classe iriam acabar com todo aquele pesadêlo.Iriam se deliciar com as iguarias francesas, beber champanha como se esta não fosse a última, rir e rir e rir das desgraças e frustrações que não eram só deles, nem sua; mas de todos nós.O Lincoln azul seria a última morada, talvez dando arte-final a bela paisagem de um precipício.
Entraram no restaurante com o passo acompanhando a melodia de uma música que estava sendo tocada no violino.Tinham classe.O burburinho que se formava denunciava a presença de duas celebridades. "Senhoras e Senhores, acabam de chegar em nosso restaurante Sr. e Sra. Anderson, cujas almas agora formam um casal de copas na mesa de um cassino."A multidão aplaude.Logo um grupo de garçons avistam o casal e lhes preparam uma mesa.Talheres e pratos estavam dispostos sobre ela como mandava a cartilha de etiqueta francesa.O violino continuava matraqueando sem parar, juntamente com o tilintar de copos.A burguesia ria, um riso que ecoava por todo restaurante.Ernest e Margot esperaram os garçons puxarem as cadeiras para sentarem-se.Um deles, de bigode e sombrançelhas esparsas se aproximou.
- Boa tarde.O que desejam?
- Traga a carta de vinhos – disse Ernest.
- E não demore muito – completou Margot ajeitando o cabelo duro de laquê.
- Claro, minha senhora, levará só alguns minutos.Não os tornem longos.
Margot pisara com seu salto o pé do garçom.
- Insolente.Fale apenas o necessário.Faça o seu trabalho e as coisas serão mais fáceis para você.
- Queira perdoar minha mulher, senhor - disse Ernest tragando seu cigarro.
- Não se preocupe.Foi como se uma mariposa houvesse pousado no meu sapato.
- Assim seja – retrucou Margot.- Ide em paz.
- Fique com ela, você precisará mais do que eu.
E com essa o garçom se afastou em busca da carta de vinhos.
- Notou algo estranho nele, querida?
- Faça-me o favor, Ernie.Está tudo bem.
Nada estava bem.Estavam falidos mas tinham classe.Agiam como se ainda tivessem domínio sobre suas vidas, a porra da vida.
O burburinho aumentava.A burguesia ia à forra.O que Ernest e Margot não sabiam era que ELES eram o motivo da diversão.Um cara em uma mesa nos fundos do restaurante gritou "Margot Anderson chupa pau!" A platéia foi ao delírio.Finalmente o grande show começara.Margot, de sobressalto, se engasgou com a própria saliva, enquanto Ernest apagava seu cigarro num cinzeiro à mesa.Ambos não sabiam o que acontecia tampouco como encarar tal manifestação.Naquele momento eram apenas marionetes nas mãos do destino.
Era a burguesia, a alta classe, contra o que agora não é nada mais, nada menos, do que restos de nada; escombros humanos. "Ernest vendeu o próprio rabo!", mais ao fundo; "Miseráveis!", "Falidos!".Margot não mais agüentava.Aquilo estava ferindo o seu orgulho.
- Calem-se proletários! O que deu em todos vocês?!Cuidem de seus próprios rabos antes de falarem dos nossos.
- Querida...- sussurrou o velho Ernie.
- Vocês são todos fantoches movidos pela luxúria, pela ganância.Escondem-se atrás de máscaras com medo de falharem, falherem como seres humanos.Apostam corrida com a morte o tempo todo com medo de perder.Vocês são a escória da humanidade!
- Cale-se, velha bastarda! - gritou alguém.
- Margot, acalme-se - disse Ernie.
- FILHOS DA PUTA! RIAM DA DESGRAÇA ALHEIA.PODEM RIR.SOMOS FELIZES!!!
- NÃO SOMOS FELIZES! - cortou Ernie.
O que Ernest disse fez Margot tremer.A pláteia estava insana.Ernest acendeu outro cigarro e ficou olhando fixamente para o que sobrara de sua mulher.
- Ernest, o que significa isso?
- Escute, o melhor que tem a fazer e sentar-se e aproveitar toda essa merda.O que nos resta afinal?Não somos nada, nem ninguém.Você luta contra aquilo que você perdeu.Há algum tempo atrás eramos nós que estavamos ali, rindo como hienas, mandando à merda Deus e o Diabo.Nos resta apenas a morte.
- Ernest, querido, eu não entendo - disse Margot.
- Carpe Diem, vagabunda.
Ernest deu uma longa tragada em seu cigarro.Margot chorava o choro dos desesperados, um choro mudo, preso à garganta.Houve um silêncio ensurdecedor na cabeça de ambos.Havia apenas bocas e braços em movimento.Não eram um casal perfeito.Há anos que vinham mentindo um para o outro.O amor se transforma em mentira quando nos leva a crer que há alguém que nos ame também.
Unidos pelo acaso, separados pela loucura – nos encontramos no inferno.
O garçom finalmente aparecera em meio a multidão com uma bandeja nas mãos.Parou diante do casal, fez uma mesura e a colocou sobre a mesa.Impecável.Em cima da bandeja não estava a carta de vinhos, mas sim o livro Notas de Um Velho Safado, de Hank Chinaski.
- QUE PORRA É ESSA?! - gritou Ernest.
- Apenas um velho que fala demais
- É MESMO?! E QUEM É VOCÊ, GAROTO?
- Apenas alguém que fala demais.
- TÁ TIRANDO UMA COM A MINHA CARA?
Ernest partiu violentamente em direção ao garçom.
- Querido - disse Margot.
- O QUE É?
- Largue o pobre homem.Vamos sair daqui e acabar com tudo isso.A carta de vinhos devia ser pedida após a chegada da refeição, não se lembra?
- Eu só queria estar preparado para sentir a dor, como esse...esse velho esteve durante toda a sua vida.
- Todos nós queremos, querido.Poucos conseguem.
Margot levantou-se, analisou o livro carinhosamente em suas mãos e o colocou na bolsa.Ernest olhou nos olhos do garçom e partiu logo atrás de sua mulher.Saíram do restaurante sobre vaias e gritos.O pesadelo iria acabar.A ferida causada pela luta contra suas próprias existências finalmente cicatrizaria.Embora tivessem saído derrotados desta batalha que poucos vencem, não negaram a si mesmos em um só minuto.Um dia, todos aqueles ali não existirão mais.Como daremos seqüência a história de todos nós? O fim às vezes pode ser a salvação, pode estar muito próximo; pode ser a próxima curva.Ernie saiu fazendo seu Lincoln azul cantar o pneu.Eles tinham classe.
Para a platéia do show restou apenas o cair das máscaras e a espera pela morte; para o casal Anderson, um brinde.
Saúde.

John Sobrante


 
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