Pari fusos e pensamentos
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Está aí o número zero.
Bastou a vontade de alguém para tudo começar.
Eu ainda me lembro de algumas coisas – algumas coisas daquele tempo de quando ainda não queremos saber quem somos. Agora, na memória, tudo me aparece mágico. Com uma espécie de poeira alaranjada desmaiando no espaço. Os gestos, as vozes, os olhares: tudo cadenciado no ritmo de uma música inaudível. Eu posso ver minha pele vermelha refletindo o sangue novo e vivo a correr pelas veias. Tudo tão suave. Tudo sereno e sob controle. Tudo na memória, como tempo morto, como saudade cinza.
Eu me lembro da rua e me lembro de meus amigos. Eu me lembro do jogo de bola; e da bola indo no esgoto; e nos sujávamos de esgoto e jogávamos bola. A bola batia no portão e os portões pareciam arquibancadas contornando a rua. O sol nos assistia por um longo tempo e, quando cansávamos, o sol deitava-se na poluição e eu sentia vertigem e fome quando os pernilongos chegavam. Não há nada como leite e biscoitos quando se tem um jovem coração faminto.
E a noite vinha após o banho. A noite vinha controlar os meus pequenos anseios. A noite esparramava os seus tentáculos quentes e eu podia sentir o seu bafo no ar. Enquanto eu a descobria ela me velava na calçada. Enquanto eu me sentava a calçada se estendia e parecia ser ali o princípio do mundo. E a noite me fazia pensar que um dia eu iria caminhar pela calçada, andar dois, três quarteirões, depois o mundo todo, descobrindo coisas maravilhosas. A noite sabia como me fazer sonhar. Ela tinha um gosto de banho com sabonete e sorvete de flocos.
Eu sabia como fazer magia sem precisar me maltratar!
A descoberta dos primeiros contornos sensuais de uma bela garota. As faces coradas, a vergonha e o pudor latentes no peito! Meu Deus, como posso me lembrar daqueles dias amenos que passaram rapidamente sobre mim! Como a pureza de um anjo atordoado a se tocar pelas primeiras vezes. A obtenção de sufocante prazer através do corpo, mas na solidão da mente, como se coberta de pássaros.
Eu posso me lembrar. É claro que posso!
Eu posso me exercitar. Eu posso me lembrar dez, quinze, trinta vezes ao dia. Eu posso passar o dia me lembrando. Aí eu vou sorrir e o sorriso vai me fazer mergulhar nas brumas do pretérito e tudo parecerá perfeito. A imagem vai se promover em meus olhos, em meus olhos opacos. A imagem daquela bola descendo a rua, correndo, voando, livre em direção ao espaço. Como um pássaro. Um pequeno pássaro daqueles que viviam nos ninhos sob aqueles telhados, daquelas casas que não mais existem.
Sim! Eu me lembro. É claro que me lembro – mas quieto por alguns instantes.
Ramon Belame
E o garçom foi demitido.
Mal o Lincoln azul estacionou, o manobrista do restaurante já se apresentava para poder levar o carro até uma vaga no estacionamento.Margot observando a tamanha subordinação à qual o pobre homem se submetera, empinou ainda mais o seu nariz de socialite falida, enquanto Ernest se encarregava de acender um cigarro e, quem sabe, dar uma moeda para o manobrista.Era uma tarefa árdua para um homem cujo rabo e carteira, não necessariamente nessa ordem, haviam sido perdidos nas cartas.
Embora mais falidos do que um escritor em Los Angeles, ainda tinham algum dinheiro.E fome também.Não iriam chorar até o último centavo gasto – isso era para os emergentes, eles tinham classe.E com classe iriam acabar com todo aquele pesadêlo.Iriam se deliciar com as iguarias francesas, beber champanha como se esta não fosse a última, rir e rir e rir das desgraças e frustrações que não eram só deles, nem sua; mas de todos nós.O Lincoln azul seria a última morada, talvez dando arte-final a bela paisagem de um precipício.
Entraram no restaurante com o passo acompanhando a melodia de uma música que estava sendo tocada no violino.Tinham classe.O burburinho que se formava denunciava a presença de duas celebridades. "Senhoras e Senhores, acabam de chegar em nosso restaurante Sr. e Sra. Anderson, cujas almas agora formam um casal de copas na mesa de um cassino."A multidão aplaude.Logo um grupo de garçons avistam o casal e lhes preparam uma mesa.Talheres e pratos estavam dispostos sobre ela como mandava a cartilha de etiqueta francesa.O violino continuava matraqueando sem parar, juntamente com o tilintar de copos.A burguesia ria, um riso que ecoava por todo restaurante.Ernest e Margot esperaram os garçons puxarem as cadeiras para sentarem-se.Um deles, de bigode e sombrançelhas esparsas se aproximou.
- Boa tarde.O que desejam?
- Traga a carta de vinhos – disse Ernest.
- E não demore muito – completou Margot ajeitando o cabelo duro de laquê.
- Claro, minha senhora, levará só alguns minutos.Não os tornem longos.
Margot pisara com seu salto o pé do garçom.
- Insolente.Fale apenas o necessário.Faça o seu trabalho e as coisas serão mais fáceis para você.
- Queira perdoar minha mulher, senhor - disse Ernest tragando seu cigarro.
- Não se preocupe.Foi como se uma mariposa houvesse pousado no meu sapato.
- Assim seja – retrucou Margot.- Ide em paz.
- Fique com ela, você precisará mais do que eu.
E com essa o garçom se afastou em busca da carta de vinhos.
- Notou algo estranho nele, querida?
- Faça-me o favor, Ernie.Está tudo bem.
Nada estava bem.Estavam falidos mas tinham classe.Agiam como se ainda tivessem domínio sobre suas vidas, a porra da vida.
O burburinho aumentava.A burguesia ia à forra.O que Ernest e Margot não sabiam era que ELES eram o motivo da diversão.Um cara em uma mesa nos fundos do restaurante gritou "Margot Anderson chupa pau!" A platéia foi ao delírio.Finalmente o grande show começara.Margot, de sobressalto, se engasgou com a própria saliva, enquanto Ernest apagava seu cigarro num cinzeiro à mesa.Ambos não sabiam o que acontecia tampouco como encarar tal manifestação.Naquele momento eram apenas marionetes nas mãos do destino.
Era a burguesia, a alta classe, contra o que agora não é nada mais, nada menos, do que restos de nada; escombros humanos. "Ernest vendeu o próprio rabo!", mais ao fundo; "Miseráveis!", "Falidos!".Margot não mais agüentava.Aquilo estava ferindo o seu orgulho.
- Calem-se proletários! O que deu em todos vocês?!Cuidem de seus próprios rabos antes de falarem dos nossos.
- Querida...- sussurrou o velho Ernie.
- Vocês são todos fantoches movidos pela luxúria, pela ganância.Escondem-se atrás de máscaras com medo de falharem, falherem como seres humanos.Apostam corrida com a morte o tempo todo com medo de perder.Vocês são a escória da humanidade!
- Cale-se, velha bastarda! - gritou alguém.
- Margot, acalme-se - disse Ernie.
- FILHOS DA PUTA! RIAM DA DESGRAÇA ALHEIA.PODEM RIR.SOMOS FELIZES!!!
- NÃO SOMOS FELIZES! - cortou Ernie.
O que Ernest disse fez Margot tremer.A pláteia estava insana.Ernest acendeu outro cigarro e ficou olhando fixamente para o que sobrara de sua mulher.
- Ernest, o que significa isso?
- Escute, o melhor que tem a fazer e sentar-se e aproveitar toda essa merda.O que nos resta afinal?Não somos nada, nem ninguém.Você luta contra aquilo que você perdeu.Há algum tempo atrás eramos nós que estavamos ali, rindo como hienas, mandando à merda Deus e o Diabo.Nos resta apenas a morte.
- Ernest, querido, eu não entendo - disse Margot.
- Carpe Diem, vagabunda.
Ernest deu uma longa tragada em seu cigarro.Margot chorava o choro dos desesperados, um choro mudo, preso à garganta.Houve um silêncio ensurdecedor na cabeça de ambos.Havia apenas bocas e braços em movimento.Não eram um casal perfeito.Há anos que vinham mentindo um para o outro.O amor se transforma em mentira quando nos leva a crer que há alguém que nos ame também.
Unidos pelo acaso, separados pela loucura – nos encontramos no inferno.
O garçom finalmente aparecera em meio a multidão com uma bandeja nas mãos.Parou diante do casal, fez uma mesura e a colocou sobre a mesa.Impecável.Em cima da bandeja não estava a carta de vinhos, mas sim o livro
Notas de Um Velho Safado, de Hank Chinaski.
- QUE PORRA É ESSA?! - gritou Ernest.
- Apenas um velho que fala demais
- É MESMO?! E QUEM É VOCÊ, GAROTO?
- Apenas alguém que fala demais.
- TÁ TIRANDO UMA COM A MINHA CARA?
Ernest partiu violentamente em direção ao garçom.
- Querido - disse Margot.
- O QUE É?
- Largue o pobre homem.Vamos sair daqui e acabar com tudo isso.A carta de vinhos devia ser pedida após a chegada da refeição, não se lembra?
- Eu só queria estar preparado para sentir a dor, como esse...esse velho esteve durante toda a sua vida.
- Todos nós queremos, querido.Poucos conseguem.
Margot levantou-se, analisou o livro carinhosamente em suas mãos e o colocou na bolsa.Ernest olhou nos olhos do garçom e partiu logo atrás de sua mulher.Saíram do restaurante sobre vaias e gritos.O pesadelo iria acabar.A ferida causada pela luta contra suas próprias existências finalmente cicatrizaria.Embora tivessem saído derrotados desta batalha que poucos vencem, não negaram a si mesmos em um só minuto.Um dia, todos aqueles ali não existirão mais.Como daremos seqüência a história de todos nós? O fim às vezes pode ser a salvação, pode estar muito próximo; pode ser a próxima curva.Ernie saiu fazendo seu Lincoln azul cantar o pneu.Eles tinham classe.
Para a platéia do show restou apenas o cair das máscaras e a espera pela morte; para o casal Anderson, um brinde.
Saúde.
John Sobrante
CÂNTICO
Eu vou escrever pra vocês:
Um escritor não faz de seu peito um vaso de flores mas faz de seu peito latrina.
A fumaça do cigarro não é fumaça é pigarro.
Os brasileiros passam em faróis amarelos.
Os brasileiros passam em faróis verdes.
Verde e amarelo.
Do fundo do meu esôfago, das minhas tripas,
acreditem,
a morte e a vida dançam num balé frenético;
numa terrível imagem do nascimento de Cristo.
O conflito cria cristais que crescem e cristalizam
nas voltas e volturas do coração.
E agora José?
Os brasileiros passam em faróis amarelos
e verdes.
Mas vomitamos colorido.
As cores entrelaçadas fazem um silêncio terrível;
e no salão as paredes choram
velando um poema.
Ramon Belame