via crucis
ultimamente tem sido difícil trabalhar a palavra, não é mesmo? então ele larga tudo de lado e, num ato profético, começa a desenhar no ar a cena com o dedo. no canto faz um sofá confortável o suficiente para oitenta e cinco quilos de matéria humana, onde certamente ficará questionando sua capacidade mental até cansar-se da fisionomia do teto. é lá que o prodígio tomará uma dose e adormecerá por alguns minutos, despertando pouco depois sem reclamar a Deus e ao Diabo a dor em seu pescoço porque o seu desespero parece não só ter enrijecido os braços daquele que o acolheu durante o cochilo, mas aquela coisa dentro do peito também.
aconteceu com todos. alguns chamaram de “mal do escritor”, no entanto a maioria morreu ou apinharam sanatórios e casas de custódia sem saber que o mal, na verdade, é ser o escritor. a coisa toda te pega por trás, faz você acreditar que tem estilo, uma prosa agradável, poesia envolvente, controle sobre o vício que te mantém acordado durante a noite; a máquina metralha sem dó o papel e sempre aparece um troço seu publicado aqui e acolá. mas aí vem aquele vento frio que passa entre as janelas e arrepia a espinha do sujeito. as palavrinhas voam e a tinta seca. o papel endurece. aquela coisa lá dentro também, eu disse, aconteceu com todos.
são os ares da má sorte. o prodígio desenha no ar um martelo. havia aquela brincadeira de moleque onde a turba agitada, num misto de satisfação e dor, imobilizava o catatau e estouravam-lhe as pedrinhas do peito. mas essa pedra aí dentro cresceu muito, cara, talvez precise de um martelo ainda maior. a ausência de sentimento sufoca e você não consegue saber onde foram parar aquelas boas idéias que teve quando me deixou sozinho aqui e foi respirar o mundo que há além da porta. eu fico puto porque você levou os cigarros e o rádio não sintoniza uma boa programação. tudo bem. você volta. sempre volta. cada vez pior e mais vazio, por isso te escolhi. é mais fácil chutar alguém quando este ganha o chão.
chuvisco. novamente. beleza, o locutor atenta às notícias nacionais: “massa de ar frio avança sobre a região sudeste. aumenta o número de mortes causadas por armas de fogo nos grandes centros. anciã dá a luz ao décimo segundo filho.” é um alívio saber que o mundo anda nos trilhos. a porta se abre e o prodígio desaba no sofá. vejo que tem um pedaço de qualquer coisa nas mãos, deve estar com fome. surge uma barata e ele, numa última tentativa de sentir aquela coisa funcionando novamente, oferece a refeição ao bicho, que recusa sem pensar.
isso foi demais para mim. então eu escondo o rosto com o capuz e cruzo o ar com a foice. incisão perfeita, sem dor. antes que o melado se espalhe eu ganho a rua pela janela com aquela coisa premiada na mão esquerda. ele também será alçado ao panteão de heróis.
j. sobrante
olha aí, gente
são paulo num dia quente desses. parece um mantra ao contrário. Zoroastro saberia disso:a maconha deveria chegar pela comida, em suas certas doses. a humanidade iria-se amansar aos poucos.
doses biológicas dosadas pelas cabeças mais loucas.
daqui da quebrada eu enxergo uns três:
charles bukowski*
marçal aquino*
nietzsche*
e daí, vê quantos?
marcel orizá
*
muitos artistas nunca se comunicaram somente em favor das drogas, nem jamais favoreceram o consumo da maconha.. Todo o conteúdo deste blog é estritamente opinativo – interpretativo em sentido á arte trágica.