A fugacidade do delírio cotidiano
O pão com manteiga caiu da mesa.
Papai olhou para a filha
e percebeu que ela havia crescido.
Mamãe deixou o prato ao lado de um bule
que estava solitário no canto da mesa.
Mamãe pôs-se a chorar.
Papai pegou o vinho no armário
e tomou uma dose.
O prato gostou do bule;
mamãe não queria ser como o bule.
Mais uma dose.
Papai olhou para os seios da filha - nada mal.
Mais uma dose.
Mamãe atirou o prato na parede.
Mais uma dose.
A filha sorriu mostrando o piercing.
Mais uma dose.
Mamãe não queria ser como o bule.
Mais uma dose.
Papai sacou a arma.
A filha balançou os cabelos.
Mamãe era o bule.
Mais uma dose.
Atirou
O pão com manteiga tocou o chão.
John Sobrante
Luci
Já há algum tempo que o pássaro inocente beliscava a fétida tampinha de cerveja sobre a grama. A festa fora longe demais; os bêbados realmente haviam decidido agir com suas almas débeis sobre seus debilitados corpos de carne e álcool. Garrafas quebradas, cadeiras jogadas, roupas íntimas e preservativos usados faziam a paisagem do quintal. Um abstêmio acadêmico diria que Bukowski passara por ali - mas não eram os anos cinquenta. Era uma época próxima, que discreta e sutilmente ainda pulsa dentro de nós. Apenas dois corpos jaziam imóveis, estatelados sobre a grama úmida. Um deles era eu, o outro era John Sobrante.
* * *
Quando abri os olhos milhares de facas cintilantes perfuraram-me o cérebro, meu corpo parecia possuído por uma serpente a desfilar pelos meus membros adormecidos. Olhei para o lado e vislumbrei o corpo de Sobrante; estava pálido e alguns respingos de vinho e carne sobre seu peito denunciavam algumas golfadas de vômito. "Estamos na mesma", pensei.
Quando Sobrante acordou, suas pálpebras pareciam coladas de tal maneira que davam a impressão de que jamais se soltariam.
- Santo Deus, Sobrante! - eu disse - Dessa vez a noite venceu, não acha?
Recebi apenas um arroto como resposta. Uma brisa fria e ritmada insistia em arrastar guardanapos e restos de uma festa antropofágica. Fora uma noite e tanto. Os tragos tomados redesenharam a direção de nossas vidas; nos deslocou no trilho, descarrilhando nossa bagagem emocional - precisávamos nos redescobrir.
- Ei, Belame - disse Sobrante, após uma longa suspirada - , o que faremos agora?
* * *
Eu ainda não sei, caro Sobrante, eu ainda não sei. E talvez seja exatamente isso que me traz à boca um gosto de ousadia e desprezo pelo previsível. Andando na corda bamba com uma barata desfilando em meu pescoço. Mas digamos que a figura não é tão drástica, já que desconheço o que me espera no abismo.
* * *
Me lembro apenas que decidimos nos levantar. Nos abraçamos e caminhamos juntos pela rua em profundo silêncio. Todas as pessoas estavam entocadas em suas casas, com medo da ressaca ou das notícias do jornal. Talvez uma fotografia, talvez um quadro expressionista, talvez uns textos mal escritos e despreocupados consigam descrever as profundezas de nossas vidas, mas o sucesso dessa empreitada eu deixo para alguém mais delinquente.
* * *
Ao final da rua, lembro-me que Sobrante se virou para mim e com os olhos vermelhos e os lábios trêmulos me disse:
- Que tal escrevermos uns troços?
Caminhamos mais um passos e percebi que fazia frio. As árvores gemiam.
- Não é uma boa idéia - respondi.
- E desde quando eu tenho boas idéias?
Alguém chorava numa dessas casas escondidas, que demonstram apenas um portãozinho de madeira; um choro triste e cadenciado, como uma melancólica melodia clássica.
Mas essas foram as últimas palavras de Sobrante, que dobrou a esquina e desapareceu no nevoeiro da manhã.
* * *
Ele é um grande filho da mãe sacana, eu pensei. Afinal, iríamos retratar apenas o lixo e o esgoto através de nossas almas. E quem é que gosta de bater de frente com a escória? Nem todos são capazes de morrer pela verdade. Nem toda boca aprecia o sabor do sincero e do real.
Um beijo seco aos que fazem da mentira morada, e da hipocrisia refeição diária.
Eu decidi começar com um pássaro inocente. Um pássaro ébrio, feio e debilitado - incoerente talvez. Chamei-o de Luci. E Luci foi o único sobrevivente daquela noite sombria.
Ramon Belame